sexta-feira, julho 22, 2005

O Amante

Viu ontem uma referência a “O Amante” de Marguerite Duras e, num flash que lhe trespassou a memória, daqueles mais profundos, recordou a primeira vez que ouviu a palavra, estranha, ao tempo. Tinha quatro anos? Nem tanto.

Estava a avó no quarto contíguo ao do avô, onde dormia sozinha com a doença, deitada, e ao seu lado a Sra. D.ª T. Esta era uma visita habitual, morava no Porto, de meia idade, sempre bem arranjada e era solteira ou viúva... Em silêncio, de olhar grave ali estava, sentada numa cadeira à cabeceira da cama, fazendo companhia à avó. E com os dedos repletos de anéis (lembra-se de um que fazia lembrar uma bolota).

E foi aí que a avó B., sem se erguer, lhe fez a pergunta. Uma pergunta cruelmente indiscreta, mas que a curiosidade da enferma que passava os dias praticamente naquele quarto, e que a simplicidade de pessoa do campo, sem malícia, deixaram escapar: “A Sra. tem algum amante?”

A Sra. T. Continuou imóvel e com o mesmo olhar respondeu: “Não”. E B. novamente: “Há vejo-a com os anéis... pensei...”. E mais nada se disse.

E ouviu essa palavra pronunciada pela avó B. pela primeira vez na sua ainda curta vida. Um som vazio, sem sentido, mas que pensa ter associado à palavra “homem”, ou “animal”, talvez pelo género do pronome indefinido que a precedeu.

Mas que estranha palavra, nova, melodiosa, que lhe ficou ali a bailar nos ouvidos. Curiosamente não se esqueceu desse episódio distante. Talvez tenha percebido algum incómodo no ar, algum arrependimento, ou simplesmente porque adormeceu, ao lado da sua avó, e sonhou com bolotas, dedos e homens e animais estranhos...

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Andas com muito trabalho ou em grandes férias! Só assim se justifica o silencio cortante que se instalou desde o dia do teu ultimo post.
Bem...podem ate os motivos ser outros, espero que sejam os melhores motivos do mundo!

5:09 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Adorei!
Acho que ias gostar de ler Paul Auster.
Se quiseres, sugiro-te um título ou conto-te um acaso austeriano, ou meu.

10:04 da manhã  

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