sábado, abril 21, 2007

Espectro

Sobes as escadas sem sentires os pés ou a pedra fria. Uma aragem cortante vinda de parte nenhuma trespassa-te e sentes-te a desfalecer por momentos. Ergues violentamente a cabeça, precisas de estar mais consciente do que nunca, não te podes deixar ficar para trás... Agora não... Outra vez não...

Faltam menos de vinte degraus. A luz fraca vai aumentando e projectando a sombra do teu corpo hesitante até onde se avistam os degraus atrás de ti, antes de se perderem na penumbra. Um nova aragem entranha-se em ti e um calafrio percorre-te os ossos, desaparecendo na ponta dos dedos. Estás quase a chegar, a luz intensifica-se ligeiramente. Sentes cada vez com mais força a sua presença, estás mais perto, e o terror vai-se apoderando de ti. Transpiras agora ligeiramente e sentes frio. Estás a arfar cada vez mais, de cansaço e de pavor. A luz, mais forte mas sempre ténue, já te ilumina o rosto. Sentes-te desfalecer de novo. Não, não podes parar, não podes fechar olhos ou cais para trás no abismo.

Estás a um passo do corredor, onde estiveste ontem, durante o dia, e sentiste aquele ar frio que soprava, gélido, das paredes. Estás quase no topo, por momentos paralisas, avanças de novo, e de novo, e passas o último degrau quando a vês... sentes os músculos paralisarem, um a um. Respiras de forma ofegante e transpiras enquanto sentes novamente aquele sopro glaciar. E lá está ela, de pé, no outro extremo do corredor, envolta na luz ténue, de vestido cinzento e o cabelo apanhado, como sempre a conheceste.

Agora o rosto é pálido, quase branco, só olhos emergem, escuros e fortes, cravando-se fixamente nos teus. Alguns cabelos soltos, juntos às orelhas esvoaçam ligeiramente, a única vida que corre naquela silhueta perdida, de dedos cruzados, sob o peito, mostrando umas mãos alvas, menos vivas que a face. À sua volta mantém-se a única luz, mortiça como que saindo dos últimos momentos de vida de uma vela. Absolutamente imóvel, contempla-te, perfura-te, penetra os teus olhos com o furor de uma tempestade.

Sentes o delírio da morte, um poder infinitamente terrível ameaçando-te. Continua como que dentro de ti, absorvendo-te; envolves-te, quase perdido e sem retorno na imagem daquele espectro, tão real como tu. Está ali, à tua frente, imóvel, frio, cortante, espalhando o horror no olhar petrificado e devastador...

domingo, abril 15, 2007

A marcar zero

Estás perdida no meio de tudo e de nada. Na pequena praça do jardim no coração da cidade, mas sem razão ou motivo para te perderes. Fumas um cigarro fino que há pouco enrolaste, erguendo lentamente o braço e levando-o aos lábios ressequidos. Salientas a magreza do teu rosto pálido quando aspiras contra os dedos amarelecidos. Um rosto gasto pelo tempo e pelo desalento, marcado por três ou quatro décadas de existência mal vivida. A cor é a mesma do chão em que te manténs erguida e os teus olhos, imóveis, olham para um qualquer mundo irreal, ou para recordações de outrora.

Aos teus pés está uma balança quadrada, dessas que cá se usam todos os dias nas casas de cada um para agarrar a elegância. Num pequeno mostrador digital marca-se "zero". É este o teu trabalho, aguardar que alguém surja e peça para se pesar a troco de algum dinheiro. É esse o teu ganha-pão, tão irreal como tu. E assim continuas imóvel e indiferente, apenas mexendo o braço e contraindo o rosto. Há mais de meia-hora que te vejo nesse local onde não moveste os pés um único centímetro e sem que um cliente te solicite. És uma estátua de pedra nesse jardim. Não existes, só podes ser irreal, uma ilusão que marca pela negativa singularidade.